Aqui não há toque de entrada nem chumbos até ao 9.º ano. No
momento em que o Conselho Nacional de educação põe a questão em cima da
mesa, recuperamos a reportagem numa escola diferente
Cada segundo é tempo para mudar tudo para sempre." A frase que nos
recebe à entrada da Escola Básica e Secundária de Carcavelos,
sede do agrupamento, no concelho de Cascais, resume bem o que vamos encontrar.
Numa escola onde não há toques, e mal se veem relógios,
esperava-se antes a lengalenga do tempo pergunta ao tempo... O certo é que à
hora certa os alunos saem para o recreio e no fim do intervalo regressam
pacificamente à sala de aula. Há apenas um relógio de sol no chão, junto
aos campos de jogos, ao ar livre, onde os miúdos trocam bolas, uns
entre os outros. Mas aquele é só um pormenor. Muitos mais havemos de encontrar
enquanto percorremos o edifício e os espaços em volta.
"Professor, não pude vir às aulas porque andei em torneio, preciso de
apresentar justificação?" Estamos em pleno recreio do meio da manhã quando
o rapaz, do alto dos seus 16 anos, se aproxima do diretor. Este sorri:
"Claro que precisas." Não é caso único: além do campeão de ténis, que
anda sempre em jogos, por ali também há nadadores da seleção e ainda o campeão
de esgrima. "Somos também escola de referência para o desporto
náutico", conta um orgulhoso Adelino Calado, 61 anos, diretor há uma
década, a lembrar que o agrupamento tem até a seu cargo uma escola de
atividades náuticas vela, windsurf e canoagem... num corredor de água na Baía
de Cascais, entre a zona dos pescadores e o Clube Naval. Do rol de todas
aquelas mais-valias, há ainda um galeão ancorado em Cascais que é igualmente
usado por eles: "Chama-se Estou para Ver e lá dentro podem dar-se aulas de
todas as disciplinas", segue o diretor. A isto soma-se um pavilhão
desportivo bem equipado (tem quatro camas elásticas, coisa impensável para a
maioria), partilhado com clubes ali da zona, que o usam entre as 18 e as 23
horas. E, num futuro breve, uma piscina, outro bem a dividir com a comunidade:
o projeto está já inscrito no Plano Diretor Municipal e será mais um em gestão
partilhada, o segredo para tanto dinamismo.
Ainda andamos neste passeio de reconhecimento quando esbarramos com uma
rapariga de dossiê na mão, no qual se lê "7.º A". Morena, longos
cabelos frisados, calças de ganga e T-shirt branca, Raquel, 12 anos, é a
delegada de turma, e por isso é ela que transporta o livro de ponto. "Eu
já era responsável, transportar o livro é só mais uma tarefa", diz, meio
tímida, para depois confessar que vai dividir a empreitada com o subdelegado.
"É como não haver toque de entrada. Ao início é um bocadinho estranho mas
na verdade é preferível assim. Tornava-se muito irritante..."
Aprender a várias velocidades
Já passou a meia hora da pausa do meio da manhã. Aos poucos, os garotos vão
desaparecendo em direção às suas salas. Entre aqueles 1600 alunos que
frequentam a básica e secundária do 5.º ao 12.º ano encontra-se ainda um caldo
de culturas, qualquer coisa como 35 nacionalidades: canadianos, venezuelanos,
cubanos, além de europeus do Leste e africanos de língua oficial portuguesa. Só
hão de voltar a aparecer perto da hora de almoço. Os pequeninos primeiro,
claro, dez minutos antes para não serem ultrapassados pelos mais crescidos
enquanto carregam os almoços da semana no refeitório e isso faz-se com o cartão
de aluno numas máquinas colocadas sob as televisões. Uma transmite a TV
Educativa, um projeto comum a 55 escolas do País. A outra é de serviço
interno: mostra trabalhos feitos por alunos daescola e dá informações
úteis o que, num início de ano letivo conturbado como este, pode ser de grande
valor, dada a falta de professores e funcionários. Contra isso, Adelino Calado
sabe que só resulta a flexibilidade. "Se abro o bar, fecho a papelaria
", exemplifica, sabedor (e a experiência prova-o) de que a solução para os
problemas da sua escola assenta na maioria das vezes num trio feito
de negociação, compromisso e parceria.
Há uma década, o cenário era bem diferente. Daí dizer-se que há lugares
onde as pessoas fazem a diferença e ali nota-se bem, seja no à-vontade ou na
determinação das palavras do diretor Adelino Calado, alguém que acumulou o
curso de Educação Física com uma carreira de alta competição na modalidade de
andebol, no Benfica, mas que às vezes também é pescador, além de ainda se ter
formado em artes. Há décadas naquela escola, lembra-se bem que em 1977/78
chegou a ter 4 mil alunos. Em 2004, eram pouco mas de 400. "Tinha de dar a
volta a isto, e não precisei de nenhuma autonomia extraordinária. Utilizo
apenas as possibilidades que a lei permite", sublinha.
Há uma primeira grande mudança que se tornou o seu emblema: "Não
acreditamos na retenção no ensino básico. Chumbar um aluno não é a melhor
maneira de o recuperar ", insiste. No início, recorda-se, foi complicado
impor uma tese assim. Todos o acusaram de facilitismo, sobretudo quando havia
alunos a transitar de ano com negativas às mãos-cheias. "Experimentámos
vários modelos (por exemplo, avaliar por ciclo de ensino), mas aqui o que
funciona são turmas especiais nas quais juntamos quem tem grandes falhas na
aprendizagem." É o caso de uma turma de 5.º ano que só tem 18 alunos, além
dos dois com Necessidades Educativas Especiais. "Têm dois professores de
português, três de matemática... A nossa aposta é na diferenciação, cada um
aprende à sua velocidade", defende.
A avaliação é toda feita de forma diferente, com a ajuda de critérios que
não números porque, como salienta o diretor, não dividimos os alunos em fatias
para os avaliar. "Acreditamos no que o professor diz quando decide
atribuir uma nota. Em lado algum a legislação diz que tem de ser uma ponderação
dos vários instrumentos. Aqui na escola é simples: o professor tem de
ensinar, orientar a aprendizagem, criar um juízo de valor sobre o aluno e, no
final, atribuir uma nota." Claro que pelo meio é preciso usar fichas de
avaliação, trabalhos individuais e de grupo. Uma vez por período, há também um
teste comum a todos de uma mesma disciplina, sempre à mesma hora, que serve
para perceber se, em cada nível, estão ou não onde se quer que estejam. E
mensalmente seguem relatórios para a direção.
"Assim, percebo logo se há uma turma a precisar de um reforço",
acrescenta o diretor. "A nossa preocupação é saber se aprenderam a
matéria, não são as médias." Mas não esconde que, sem nunca ter pensado
muito nisso e estava para lá do 600.º lugar, em 2003..., no ano passado já
ficou entre as 25 primeiras escolas públicas do País, além de ser a melhor
do concelho. "Ah, e ainda fomos contemplados no ano passado com o melhor
aluno de matemática, um miúdo do 6.º ano que ganhou as Olimpíadas nacionais.
" Adelino Calado não esconde o que o move: "A nossa preocupação é que
terminem o seu percurso escolar com sucesso, seja na faculdade seja no
mercado de trabalho. E até no secundário, quando já há reprovações, se notam
resultados melhores. "A nossa taxa média de retenção é 3%; a média do País
é 25 por cento."
A aposta seguinte, visto que muitos alunos eram pouco autónomos e
responsáveis, foi abolir o toque da campainha. Muitos recearam que os miúdos se
sentissem perdidos. "Os mais pequenos talvez, na primeira semana",
assume ainda o diretor. "Os outros habituaram-se logo." Além disso,
chegar atrasado torna-se uma grande complicação: no primeiro ciclo, os pais têm
de levar os alunos até à sala. Os mais velhos têm de ir à biblioteca buscar o
papel para fazer o relatório, depois vão ao gabinete do aluno, que é na outra
ponta da escola, ligar aos pais e ler o que escreveram, e ainda seguem
para o gabinete do diretor para carimbar a explicação. É verdade que às vezes
lhe chegaram justificações do género "caiu um ovni à frente do
carro", mas por regra acabaram os atrasos. "Em média, na maioria
das escolas, os alunos demoram oito a dez minutos a sentarem-se na sala.
Aqui, sem toque, isso faz-se em metade do tempo." E há ainda o livro de
ponto, já o dissemos, que também deixou de ser sagrado: desde que são os alunos
a transportá-los, nunca mais desapareceu nenhum, nem sequer uma folha.
"Sentem que isso os faz importantes, e assim liberto os professores para
tarefas maiores", comenta o diretor.
Claro que há outros fatores a entusiasmar tanta gente com
a escola de Carcavelos, como as boas parcerias para o curso de
turismo, na vertente profissional e esse orgulho vê-se nas fardas engomadas na
perfeição e também na forma como algumas das alunas desse curso, as mais
velhas, encaram o papel de protetoras. Veja-se Marisa e Rita, de 18 e 17 anos,
madrinhas do 5.º E, a serem rodeadas por meia dúzia dos seus protegidos, no
último intervalo da manhã. "Então, namorados e namoradas?!", brincam
elas. A risota é geral mas por todo o lado sente-se o mesmo ambiente acolhedor.
Para isso, outra medida: abolir as aulas à quarta e à sexta à tarde, permitindo
uma pausa a meio da semana e antecipar o fim de semana. "Eram os dias que
estavam no topo das ocorrências de indisciplina e isso acabou. Hoje, chegam-me
professores surpresos porque nunca tinham dado aulas sem gritar", segue o
diretor. Queixas, ali, só ao contrário: pais a queixarem-se porque os filhos
não entraram. Adelino Calado não esconde o sorriso: "Não cabem
mais..."
Como fazer uma escola inovadora
SEM TOQUE DE CAMPAINHA
À hora marcada pelos relógios, alunos e professores dirigem-se para a aula
ou saem. A responsabilidade fez o resto. Acabaram-se os atrasos.
ATÉ AO FINAL DO 9.º ANO NÃO HÁ CHUMBOS
Acredita-se que a retenção não é melhor maneira de recuperar miúdos.
TURMAS ESPECIAIS
Quem tem dificuldades passa a estar numa sala em que há mais do que um
professor por disciplina SÓ UM TESTE POR PERÍODO Mas há também fichas
individuais e trabalhos de grupo, o que obriga os alunos a acompanharem a
matéria diariamente.
LIVRO DE PONTO
Os alunos é que o transportam e são responsáveis pela forma como deixam as
salas depois de as usarem.
TARDES DE 4.ª E 6.ª LIVRES
Não há aulas à quarta e
à sexta-feira à tarde, alturas em que havia mais indisciplina.
In: Revista Visão
http://visao.sapo.pt/actualidade/sociedade/conheca-a-escola-onde-nao-se-chumba=f811779
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