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sábado, 2 de abril de 2016

NA CASA DA FLORESTA


Ainda não são nove da manhã e já se contam pelos dedos das duas mãos os miúdos que estão pendurados nas árvores. Nem a chuva miudinha desta semana os impede de aproveitar os últimos minutos antes do toque de entrada para desbravar ao ar livre as primeiras energias da manhã. Não estamos em nenhuma comunidade hippie do Alentejo, nem estas crianças são amostras de meninos da selva. Estamos, aliás, a 2,5 quilómetros de um monstro citadino chamado Colombo e a poucos metros de uma IC19 em hora de ponta. 

Esta espécie de oásis tem nome, filosofia e – desanime-se quem já só pensava na parte espiritual - horários, regras e mensalidades. Isto porque falamos de uma escola, com turmas que vão desde o Jardim de Infância ao 2.º ciclo, que respeitam as normas impostas pelo Ministério da Educação, mas cujo método de ensino fica a anos luz do tradicional. Aqui não existem manuais nem trabalhos de casa. Os cadernos não têm linhas nem quadrados, não existem computadores, nem nada que seja feito de plástico. Escreve-se a lápis de cera e as pinhas apanhadas no quintal transformam-se em carros ou casas na imaginação dos mais de cem alunos que enchem esta escola criada em 2004 por um grupo de pais descontente com o que encontrava no ensino regular. Rita Da Costa apanhou o comboio a meio, ou seja, não é fundadora, mas de mãe preocupada com a educação de um filho, acabou como diretora da Casa Verdes Anos. “Aqui encontrei tudo aquilo que procurava”, conta ao B.I., “desde a liberdade que é dada a cada criança, ao espaço espaço verde que envolve a escola, até ao cuidado com a alimentação”. Isto porque, nada que não seja biológico passa pelos grandes portões dos edifícios situados nos anexos do Palácio Marquês de Fronteira, em Monsanto. Além disso, as refeições são ovo-lacto-vegetarianas, evita-se o uso de açúcares refinados e é na escola que fazem o pão, as bolachas e as compotas dos lanches. “Eles acham mesmo que tudo o que lhes vem parar à mesa vem da horta do quintal”, conta Marta Cordeiro, encarregue dos mais pequenos, os primeiros a acreditar que são uns “anõezinhos” que vivem debaixo da terra que lhes dão todos os legumes do almoço. “Mesmo as cenouras mais raquíticas que às vezes nos calham”, brinca. Mas é recorrendo a anõezinhos, fadas e pós mágicos que, por exemplo, não é preciso ensinar nenhuma criança que não deve pisar as plantas do jardim. “Eles sabem como as coisas são feitas, foram eles que puseram as sementes e viram a planta crescer”, acrescenta. 

Todos estes pormenores que nos fazem repensar os 12 anos passados no liceu mais próximo de casa, são os pontos chave da pedagogia Waldorf, que tem como pilares fundamentais a filosofia holística, a responsabilidade social e a ligação com a natureza. “A criança é o ponto central”, explica Rita. Daí que todo o trabalho pedagógico seja direcionado para promover as potencialidades individuais de cada uma, através de princípios como a responsabilidade, a justiça, a generosidade e a tolerância. 

Mas chega de apresentações, até porque seja qual for a matéria, ganha muito mais piada quando posta em prática. Além disso, já são 9h e, apesar do caráter livre e criativo, os horários são para cumprir. “Desengane-se quem acha que aqui os miúdos fazem o que querem”, esclarece a diretora, “temos tantas ou mais regras do que as escolas normais”. E a primeira é evidente: guardar o telemóvel até que seja hora de ir embora. Aqui não entram tecnologias nem para tocar a campainha a que todos nos habituamos a seguir como ordem de entrada. Mas já lá vamos. 

O 4.º ano do João Voltemos então a olhar para o relógio e a confirmar a hora. Ainda há crianças penduradas em árvores, às quais se juntam os mais atrasados que chegam de mão dada com os pais, com autorização para os deixar mesmo à porta das salas. As conversas dos adultos misturam-se com os risos de quem aproveita os últimos minutos de brincadeira antes de começar a jornada de aulas. Ainda como música ambiente, começa a ouvir-se um som de flauta que aos poucos se sobrepõe às conversas dos pais que vão saindo e aos risos dos miúdos que, qual lenda ou conto, vão seguindo a melodia. É João, o professor do quarto ano que serve de maestro e, ao assumir a posição de flautista de Hamelin, tem já atrás de si os cinco alunos que lhe vão encher a sala de aula. Ainda à porta, todos trocam as botas da chuva por meias ou pantufas, um dos métodos usados para que a escola se assemelhe ao bem-estar de uma casa. Ninguém se senta nas cadeiras de madeira, porque já sabem que o dia não começa sem o ritual da roda. Reunidos num círculo, saúdam o sol, as flores e os animais através de uma espécie de oração acompanhada por gestos que já sabem de cor. Com os ânimos já mais calmos, João dá início à matéria que, para os mais distraídos, quase que continua com o mesmo tom de brincadeira do recreio. Todos têm um pau comprido na mão que têm que bater no chão ou trocar com o colega do lado conforme a palavra que saia da boca do professor seja um adjetivo, substantivo ou verbo. “Correr”, diz João. Os paus batem num compasso certo. “Armário” já dá direito a dois segundos de pausa antes de passarem o pau de mão em mão, ainda que mesmo assim não haja um que caia ao chão. 

O 1.º ano da Rita No mesmo edifício, apenas a um lanço de escadas de distância, está a sala da diretora, a que todos se dirigem pelo nome. “Aqui somos a Rita, a Marta, a Sofia. Eles não precisam de me chamar professora para saberem que o sou”. Apanhamos a turma em plena atividade, no espaço amplo que todas as salas reservam para os momentos que não são passados sentados à secretária. “E são muitos”, garante Rita, que já de corda na mão conta com a ajuda de uma das alunas para marcar o ritmo dos “amigos” dos números. “Tomé, agora é a vez dos amigos do quatro”. A cada salto à corda vai fazendo contas mentais que lhe saem em forma de lengalenga. “Quatro... oito... doze...” e continua até que pisa a corda aos 28. “Ajudem lá o Tomé, o que vem a seguir?”. Um coro de vozes grita 32 e Rita avisa: “Temos que melhorar Tomé, estudar esta parte mais um bocadinho”. Nas mesas provisoriamente vazias há cadernos com folhas brancas e lápis de cera. “Cada caderno é uma obra de arte e eu não vou fazer arte num caderno quadriculado da Staples”, ironiza. Como só os mais velhos têm direito a caneta de tinta permanente, até aí as lições são escritas a lápis coloridos e daí que se confunda facilmente o caderno de matemática com um de artes manuais. Para garantirem que todas as matérias impostas pelo ministério fazem parte do curriculum, os professores que seguem a pedagogia Waldford têm o trabalho extra da criatividade. Isto porque aqui a divisão não é feita por disciplinas e os temas são dados por épocas de quatro semanas. “Se estamos a dar o corpo humano, o professor tem que conseguir inserir a matemática, o português e o estudo do meio nesse tema”, explica. 

O 2.º ano da Sandra Deixamos a sala do primeiro ano quando já todos tinham descoberto os “amigos” dos números e entramos na do segundo ano mesmo na hora de rever os meses do ano. “Ainda se lembram do que aprendemos ontem?”, pergunta Sandra. Os dedos no ar são imediatos, mas é Camila que tem direito à palavra. “Escrevemos um texto sobre os anos bissextos e os anos comuns”. Mas será que ainda se lembram quais são? Com mais ou menos certeza lá vão ditando um calendário ao qual, antes de ser corrigido pela professora, vão dando menos um dia a Agosto e 31 dias a Novembro. Para ajudar na arte de decorar, Sandra pede para lerem, um a um, o ditado que têm vindo a escrever para cada mês do ano. “Dezembro frio, calor no estio”, lê Camila. Guilherme, já bastante inquieto na cadeira, sussurra: “o que é ‘estio’?”. Isaura, a colega de carteira, dá uma ajuda, mesmo com ar de pouca paciência. “É verão, a Sandra já tinha dito ontem”. 

O jardim-de-infância da Marta Quase que esbarramos com Marta no corredor, que vem de mãos cheias de fruta. Quando entra na sala tem o olhar de 18 miúdos virados na sua direção, aparentemente ansiosos pela pausa a que já estão habituados. Aos poucos, vão-se reunido numa roda em cima do tapete cor-de-rosa. Marta vai cantando em voz baixa. “Oh minha amora madura, que foi que te amadurou”. No tabuleiro não traz amoras, mas sim kiwis, que com um copo de chá, compõem o lanche da manhã desta turma de infantário que, ao contrário do que acontece nas escolas tradicionais, não está dividida por idades. “Temos aqui meninos dos três aos seis anos”, conta Marta. Apesar de aparentemente confuso, a educadora garante que é um método que resulta. “Há muita entreajuda, os mais velhos levam os pequenos à casa de banho, esperam por eles quando se atrasam, acabam até por ser uma ajuda para nós”. Mesmo que tenha que interromper o seu trabalho para responder às questões de quem vê o método Waldorf pela primeira vez, não demora nem um segundo a responder a quem a chama. Nem de propósito, é Benedita quem lhe puxa a bata a pedir atenção. “A Mariana puxou-me o cabelo”. Marta chama as duas para perto de si, enquanto se baixa para ficar ao nível da sua altura reduzida. “Acho que vocês estão a precisar de um abraço daqueles que só as amigas sabem dar”. As duas cruzam um olhar tímido mas acabam nos braços curtos uma da outra e, como bónus, levam mais da educadora. Com as duas nos braços diz: “Este foi o melhor abraço do dia”. 

O jardim-de-infância da Sofia Se de manhã a chuva miudinha ainda permitiu algumas subidas às árvores, a chuva forte das 11h não está a dar tréguas, impedindo a saída habitual antes da hora de almoço. Sofia espreita pela janela, assim como Marta já o tinha feito várias vezes, na sala ao lado, sempre na esperança de ver uma nesga de sol. Assim que a chuva parece mais fraca, Sofia dá a ordem. “Vá meninos, podemos ir lá para fora”. Equipam-se de galochas e impermeável e segue-se uma meia hora de entra e sai do alpendre, num ritmo que segue o da intensidade da chuva. A Marta, da sala ao lado, bem nos tinha avisado que aqui o mau tempo não é impeditivo de nada. “É por isso que estes miúdos raramente ficam doentes, o brincar na terra e apanhar chuva cria defesas”, lembra. Mas nem o impermeável mais forte faz frente aos minutos seguintes. “Vamos para dentro”, diz Sofia, apoiada pela auxiliar que recorre novamente à música de flauta para reunir as tropas. Já de cabelo seco e meias trocadas, Duarte é o ajudante de serviço da educadora. Espalha os pratos pelas mesas, acerta no lugar do garfo e da faca, mas é na hora do guardanapo que se tomam as decisões importantes. “Posso escolher, Sofia?” A professora faz um aparte para explicar que, como não usam guardanapos de papel, o seu ajudante do dia tem direito a espalhar como quiser os guardanapos de pano de cada um. “Vou por o meu ao lado do Ari”. Sofia olha para ele com ar de quem relembra alguns almoços barulhentos. “Eu juro que desta vez vou tentar falar menos”. Sofia aceita dar mais esta oportunidade à dupla, dando força a um dos pilares desta pedagogia, que procura fazer da criança um ser mais responsável e consciente de si. A abordagem, que teve como origem a filosofia do alemão Rudolf Steiner, tem como objetivo desenvolver indivíduos livres e moralmente responsáveis, aliciados pelo contacto com a natureza, as cores, o toque e os contos de fada que os ajudam a compreender melhor as emoções. Para que tudo funcione a um ritmo natural, sem imposições, gritos ou regras impostas à força, o dia nesta escola funciona como se de uma respiração se tratasse, com momentos de expiração e inspiração. Se a brincadeira funciona como expansão, há que preparar as crianças para o momento da refeição, que tende a ser mais calmo. Essa transição faz-se de uma forma quase impercetível: as vozes das educadoras vão-se transformando em melodias calmas, baixam-se as cortinas para que não entre tanta luz e deixam-se já as camas prontas para a sesta que aí vem. Nas “mãos em barquinho” vai-se passando óleo de calêndula, com efeitos calmantes, e o toque final é dado pela educadora quando lança os “pozinhos do silêncio” que, aparentemente, todos apanham. Num jogo de cores, a auxiliar Sara vai dando ordens subtis para se sentarem à mesa. “Agora vão só os que têm calças azuis cor do mar”. Levantam-se três à procura do lugar do guardanapo que trouxeram de casa. “Agora é a vez dos que têm camisolas amarelas cor do sol”. A palete de cores segue até que as mesas estejam cheias e seja servida a sopa de beterraba. Aqui ninguém estranha o vermelho da sopa ou o prato cheio de grão, cenoura e boulgour. Entre garfadas, Alice conta aos colegas da mesa que de toda a comida do mundo só não gosta de millet, um cereal desconhecido para a maioria, mas não para uma mesa habituada a uma ementa composta por tofu, soja, papas de aveia, legumes e frutos secos. “Mas grão”, continua Alice, “eu adoro”. Ari pousa a colher da sopa, até porque falar de comida exige alguma atenção. “Tu só adoras grão? Eu amo”. A colher volta à mão direita e, em três idas à boca, rapa a tigela daquilo que todos conhecem por “sopa do amor”. Juntar desta forma um sentimento, uma cor e um prato de comida saudável deixaria Rudolf, no mínimo, orgulhoso. 

 Extraído de http://sol.pt/noticia/501415?source=social

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